Adentro

1.

Desço a escada do avião e ao meu redor há pouca coisa além do sentimento de desterro e agonia por me encontrar numa terra estranha, a solidão muito própria deste primeiro momento num território que é pátrio e tão estrangeiro. Percebo também árvores tentando evitar um horizonte infinito e quente até o momento em que meus olhos encontram a estrutura de concreto e vidro e letras prateadas muito geométricas que identificam PORTO VELHO sem maiores anúncios ou avisos. Mapas nunca prenunciam concretos ou vidros, mapas não sonham nada.

Alguém teria de conferir a venda de madeira em Santo Antônio do Matupi, e, muito embora não tenha me oferecido, tampouco vacilei quando fui convocado à viagem. E, por me atirar quase ao acaso em aventuras muito mais por necessidade que pelo gosto mesmo de aventurar-se, continuo interessado em tudo que se me presenta para lidar com este vazio de se estar num lugar ainda estranho, mas apenas o calor forte me abraça sem rodeios e ao meu redor nada ainda me significa e fatalmente nunca significará.

A esteira rolante começa a se movimentar com a preguiça muito própria da mecânica e à minha frente passam malas, caixas e embrulhos, malas, caixas e embrulhos: pego a mochila preta que suspendo nas costas e observo as pessoas cruzarem o limite da porta sem receio. Tentando premeditar surpresas, abro um mapa e o analiso como quem examinasse a anatomia de um corpo (nem que fosse meu corpo!): deduzo que até o Matupi teremos de alcançar Humaitá e depois seguir, mas não tenho certeza, pois os músculos e os ossos desses lugares estão ainda envoltos pela grossa pele do desconhecido.

Apanho o celular no bolso – nenhuma ligação, nada. De que me adianta pensar em Elizabeth agora tão distante? se tudo que posso fazer é ir.

2.

A BR 319 é um traço infinito que se estende como quem não possui tempo, moroso rumo a lugar algum em meio ao nada – nada. A BR 319 é um igarapé de asfalto no qual floresce em sua margem alinhavados postes, impossíveis quilowatts viajando por fios suspensos e indiferentes a qualquer luz. Nesse marasmo – um rebanho de novilhos atarantados abre e fecha caminho, um trator movimenta o pasto – as árvores monumentais ao fundo da paisagem parecem indiferentes ao nosso carro.

A continuidade quase hipnotiza e eu mesmo moroso remoendo transtornos sem o susto de curvas ou o perigo de ultrapassagens. O balanço monótono e o ronco constante do motor não me derrubam num sono, mas me confundem pensamentos, longilíneo absurdo fazendo florescendo impossíveis sentimentos que me expõem: tudo em mim é contundente apesar de confuso e cheio de curvas e percalços. Ao meu colo, o mapa como se o ninasse (e talvez o nine) enquanto aos poucos me confundo em sonos antigos, o sorriso ainda quente de minha mãe avisando chegadas, Elizabeth me sorrindo despedidas pouco antes do avião partir com pressa – a BR 319 é um voo reto e firme e muito plano no qual nada pode acontecer.

3.

No entanto, acontece: sem avisos ou anúncio, a BR 319 se desnuda finita e morre aos pés da Transamazônica – mítica Transamazônica aberta numa violência tão distante que sequer causa dor, muito embora ainda seja possível ouvir máquinas em potência de óleo diesel colocando abaixo qualquer coisa sob o olhar atento e matemático de topógrafos, uma transversal tentando cruzar o país que morreu como se nunca tivesse existido.

Desperto e lógico, desdobro o mapa no qual procuro qualquer indício desse acontecimento que é a Transamazônica e que se coloca à frente, mas não encontro nada além de um traço tímido escalando incerto o Amazonas e o Pará e o Maranhão e o Piauí. Todavia, a Transamazônica estende-se à esquerda e à direita numa linha transversal que, ainda em surpresa, não coloca muitas questões ao imperativo de seguir – e o carro continua impassível num ímpeto de caminhada rumo ao vazio que de repente é suspenso pelo balé circular de urubus que ascende e desce no céu quente e úmido de Humaitá.

É possível um vazio maior que este?

4.

Paramos, por enquanto. Caminho pelas ruas de Humaitá que desconheço, assustado por bicicletas que surgem aos enxames e somem em pedaladas dentro da noite quente. Caminhar numa cidade estranha deveria arejar meus pensamentos, pois estar em trânsito proporciona perspectiva e quase nenhum procedimento, no entanto me irrita a excitação de não saber rumo, desconfiar de esquinas, sentir-me constantemente sob a vigia de olhares furtivos que me identificam desconhecido e me estudam.

Sempre é possível um vazio maior do que o anterior.

Amanhã sairemos cedo, mas, deitado numa cama de hotel, não sinto sono. Não sei o que é isso que se ausenta em mim numa saudade, estranho vazio que não incomoda, mas que me remete a um sorriso (agora mudo, noite), a um olhar (agora calmo, mormaço), o rosto de Elizabeth me prometendo paraísos que retribuo com abandonos. Envio a ela uma mensagem dizendo que estou bem e, ainda que não espere resposta, mantenho o celular nas mãos.

Não sei o que é isso que se ausenta, porém me assola numa insônia nesta noite aflita, o desejo açoitando o corpo numa hora morta e solitária, a necessidade de sentir-se seguro. Não sei o que é isso que me assombra e que solidão é essa que me assusta, mas que nunca me impedem de estar só num fim de mundo que nunca acaba.

Elizabeth me liga. De certa forma, é como se a distancia me protegesse daquele algo que ela me promete em sorrisos e que desconheço e temo. Não entendo meu medo e esta necessidade de fuga à qual me entrego, pois ela me devota cuidados, algo como música em palavras calmas, Elizabeth desde sempre a me observar num silêncio diurno.

Ela me liga, mas não atendo.

5.

A Transamazônica é tão imperativa que sequer o rio Madeira é capaz de impedi-la: uma balsa traça o rio de uma margem a outra como se uma continuidade sobre as águas marrons até que finalmente o marrom da terra batida impondo acidentes numa infinidade de buracos e atoleiros, inúmeras pontes providenciando caminho não importando rios, declives ou aldeias, não importando nada.

Não sei onde estou, mas o calor úmido é infernal e ao meu redor são índios me contando histórias e todas as histórias são a mesma história de desolação & abandono. Em meio a tantas pessoas, uma mulher me observa com curiosidade. Aproveito a dispersão para alcançá-la e me apresento, ela diz um nome

– Cecília

e sua voz é muito baixa apesar dos lábios grandes, o rosto redondo e os olhos esquivos deixam entrever muito pouco. Cecília me interessa numa curiosidade, entretanto trocamos poucas palavras – o que haveríamos de falar? – e ela se despede justificando ser horário de aula. Ela é professora desta aldeia na qual pernoitaremos.

Meu corpo suspenso numa rede tenta sono, mas barulhos estranhos assolam a escuridão de árvores que ao menos neste momento escondem-se: não as vejo ainda que force os olhos. Tento discernir dentre morcegos e pernilongos os muitos sons que desconheço, pois no meu íntimo também não reconheço os sons que se desfazem em vozes e sorrisos, Elizabeth distante me prometendo coisas que não posso aceitar, muito embora não entenda exatamente a razão de minha negativa. Repete-se uma voz baixa como um sopro

Cecília

e me transtorna de uma forma que não sei se incômodo ou prazer.

Cecília a noite inteira.

6.

Numa noite anterior a esta viagem, deitada ao meu lado na cama, Elizabeth sorria e, ainda que eu perguntasse

– o que está havendo, B?

ela nada me respondia. Sei que deveria amá-la e que aquele sorriso deveria me inflamar numa espécie de euforia ou me postar numa calma muito profunda, entretanto me assustava (e ainda me assusta). Por isso eu insistia

– o que está havendo?

mas ela apenas me devolvia aquele sorriso, Elizabeth se divertindo com meu espanto sem se dar conta do meu desespero. Melhor que ela não tenha me respondido, pois eu mesmo não saberia explicar o que me atormentava.

7.

O dia outra vez e muito cedo: há uma névoa sobrepondo-se ao horizonte, mas não demoro reencontrar as árvores centenárias que aos poucos recobram a imponência. Colocando as coisas no carro, descubro Cecília frente a um quadro-negro desvendando o abecedário e algumas crianças observam pouco atentas ao que ela diz numa voz firme mas delicada que escapa daquela estrutura de madeira coberta por grandes folhas secas entrelaçadas num artesanato.

Sinto-me tentado a perguntar a ela o que temo no sorriso de Elizabeth – mas o que ela poderia me dizer? se sei que na verdade Cecília e eu temos em comum uma necessidade de fuga por acreditarmos que, seja quais forem, as possibilidades impõem o imperativo de aproveitá-las e vivê-las em intensidade e descontrole. Acima de tudo, sei que para ela também a desolação e o abandono forjando perspectiva e pouco procedimento é muito provavelmente uma forma colocar-se num ponto cego que justifica a incapacidade de escolha ou decisão. Do contrário, o que faria ela aqui?

Precisamos continuar a viagem, por isso me desfaço da atenção que dedico à Cecília, os índios me agradecem balançando a cabeça em afirmativas e entro no carro. Em poucos instantes, estamos novamente na monotonia às vezes acidentada desta estrada. Não me despedi de Cecília – rapidamente descobre-se que não é possível apegar-se a nada neste lugar, que, apesar de tão cheio de árvores, não permite raízes, certezas ou paradas: tudo é passagem.

8.

Ao longo do caminho, percebe-se rios que nascem e morrem e desembocam em outros rios que nascem e morrem sem que saibamos exatamente esta razão de ser – para nosso mais íntimo horror, afronta irremediável à lógica. A mata é densa e sinto na boca este gosto quente e úmido do desterro: onde estamos? Não encontro mais o mapa entre minhas coisas e os caminhos abrem-se impassíveis à nossa frente sem que percebamos e assim adentramos um espaço (picada, aldeia ou vilarejo, pouco importa) estranho que provavelmente sequer existe – para nosso mais íntimo horror. E para nosso mais íntimo horror, pressente-se que há uma espécie de imperativo inexplicável que cobra a continuidade ainda que não se saiba a razão, como se, por haver caminhos, devemos caminhar.

9.

Por mais que se prossiga, a estrada persiste em estender-se indefinidamente e se perpetua abrindo um caminho. A Transamazônica nunca terá fim tal foi o ímpeto deste rasgo aberto com tanta voracidade, a mata pesada e fechada ao redor jamais conseguirá impor-se novamente sobre o faixo aberto no qual o carro se atrapalha em buracos, mas prossegue.

Meu corpo pesa em suores. Sinto-me à beira de algo que não compreendo, mas devemos prosseguir e continuar, ainda que exposto ao perigo de uma queda. Impossível manter-se numa constância – a monotonia intermitente do carro forja uma segurança que não existe, nunca existiu. No entanto, um cansaço repentino e insuportável me baqueia. O celular não tem sinal, mas encontro os fones de ouvido, procuro música e sem querer me descubro dormindo para então me deixar ao sono.

10.

A Transamazônica é um sonho que nunca acaba, minha vida um delírio que tento (quero?) controlar e não consigo.

11.

Acordo num calor de febre e não me reconheço embrenhado neste lugar ao qual não pertenço – e as árvores denunciam que esse mundo muito próprio nunca deveria ter sido devassado. Ao meu redor nada me significa e sem anúncios ou avisos o rosto turvo de Cecília ensimesmada, Elizabeth sem qualquer resposta prometendo sorrisos que não me interessam, pois um frio se alastra numa Transamazônica tão glacial que não consigo me recostar e esperar a chegada, tampouco sonhar retorno neste caminho de buracos cada vez maiores, espaços cada vez menores, cada vez mais estranhos.

Tento evitar a claridade que me incomoda e, nesses grandes silêncios repentinos que interrompo aos sustos, o sol pende (o que está havendo, Cecília?) e some por entre árvores imensas (o que está havendo, B?) que inventam noites e algo diferente de sono pesa sobre meus olhos (o que está havendo?), mas uma espécie de sono ainda assim, pois meu corpo cansado estiola e se encolhe aconchegando-se no ventre inóspito deste lugar e adormeço numa vigília, confundindo em delírio sons e sorrisos mas sabendo que devemos continuar, que vamos continuar.

(Publicado originalmente no site Museu do Sonho em junho de 2013 e na revista Flaubert #03 em maio de 2014)